quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Kant e Freud: a moral e o amor

Kant, na parte de sua obra dedicada à moral, tentou criar uma espécie de "teoria pura da moral", algo como Kelsen quis fazer em relação ao direito.  Ele busca isolar a moral de todas as outras influências que podem determinar nosso comportamento. Não tem valor moral, por exemplo, a ação adotada por receio da punição prevista em lei ou mesmo da desaprovação das pessoas. Da mesma forma, não teria valor moral a conduta ditada por um afeto, mesmo positivo, como a simpatia, a compaixão ou o amor. A ação moral "pura" seria comandada apenas pelo dever de obediência à lei moral.

As relações entre o amor e a moral são debatidas na filosofia. Em geral, a moral é considerada um "minus" frente ao amor. É este que, na verdade, estabelece o que pode ser o padrão mais elevado da nossa conduta. A moral tentaria espelhar-se no amor: "aja como se amasse" seria a máxima que nos permitiria atitudes moralmente corretas. Talvez venha no mesmo sentido a conhecida frase de Santo Agostinho: "ame e faça o que quiser."
Kant: teoria pura da moral?

De qualquer forma, prevalece na filosofia, por influência kantiana, a distinção conceitual entre moral e prudência. A moral é a ação desinteressada, a prudência, ao contrário, é o cuidado com as consequências do comportamento, com o que ele pode trazer de vantagens e desvantagens. A ação moral advém do "imperativo categórico" e sua característica marcante é desprezar as consequências; por isso se fala numa ética de princípios, baseada em Kant, e numa outra dita consequencialista, associada ao utilitarismo.

 A psicanálise trata a moral de forma distinta, embora lhe confira lugar de suma importância na sociedade e no psiquismo individual. Freud tem uma visão hobbesiana do homem e da sociedade: o Estado e a moral são necessários para sufocar em nós o lobo primitivo. Contudo, essa visão do homem que pode ser considerada pessimista, que admite em nós a persistência de impulsos agressivos e antissociais, pode suspeitar de nossas "boas intenções", caras a Kant. Nossas boas ações podem ser interpretadas de outras maneiras: podem servir para atrair a admiração e o amor das pessoas, para apaziguar a visão que temos de nós mesmos, podem até substituir uma ação nociva ou agressiva que logramos reprimir. Esfumaça-se, assim, a distinção entre moral e prudência, egoísmo e altruísmo. 
Freud: visão hobbesiana
do homem e da sociedade

O próprio Kant pensou sobre isso. Há algo de tranquilizador em agir bem, em ser bom, em adotar a conduta ditada pelo imperativo categórico. Seria um afeto que, na sua linha de pensamento, poderia retirar o valor moral da conduta: pode ser prudente ser bom, prazeroso, motivo de orgulho ou até de um sentimento de superioridade sobre os demais. Kant afasta a objeção afirmando que quando agimos bem o que sentimos é respeito, não por nós, mas pelo próprio valor da conduta, da lei moral, daí advindo também a admiração dos demais. O valor objetivo da ação moral é resguardado. Por que nos sentimos orgulhosos dela? Por que ela pode ser prazerosa? Porque tem um valor em si.

Código de Hamurábi, no Louvre: internalizamos
a lei externa no superego
Penso que Freud não negaria o valor objetivo da ação moral. Agir bem não é mera conveniência ou hipocrisia. O superego, a parte do nosso psiquismo que comandaria o agir conforme às leis morais, não é mero capricho do pai, tem uma dimensão social. O "ideal do eu", outra face do superego, não é mera idealização pessoal, mas contém o ideal do que deve ser o comportamento do homem em sociedade. A psicanálise só torna mais complexa a questão. Aprendemos a agir moralmente quando crianças, na nossa educação, e talvez o façamos inicialmente por medo e sobretudo em busca da aprovação e do amor dos pais. Se agirmos mal, podemos não ser dignos do seu amor. Também na vida adulta o agir bem poderá estar ligado ao desejo de ser aceito, respeitado, amado pelo outro. Mais ainda: por nós mesmos. Já aqui, para nos mantermos fiéis ao "ideal do eu", para sermos dignos do nosso próprio respeito, podemos e às vezes devemos dispensar a aprovação dos demais.

Seria o caso de renunciar à pureza buscada por Kant, à beleza de sua construção conceitual. Abrandarmos as rígidas fronteiras estabelecidas entre a moral e o amor. O agir amoroso incluiria, como vimos, o agir bem. Mas agir moralmente talvez seja igualmente uma forma de amar, aos outros e a nós mesmos.














quarta-feira, 24 de julho de 2013

Da lógica à democracia: a filosofia americana no século XX

Estive lendo um livro (A filosofia americana: conversações, de Giovanna Borradori, Unesp) sobre a filosofia americana moderna e gostaria de compartilhar algumas impressões. Já havia lido Rorty,alguma coisa de Putnam e, mais especificamente na filosofia do direito, Dworkin. O livro me permitiu uma melhor sistematização.

No início do século XX, até a Segunda Guerra, segundo a autora, a filosofia americana não produziu grande coisa. Nada realmente inovador havia substituído a contribuição dos pais do chamado pragmatismo, Charles Sanders Pierce, William James e John Dewey. Esses autores serão revisitados pelos filósofos americanos depois de 1950 e continuam tendo uma grande relevância. O pragmatismo é marcado por uma profunda discussão quanto à verdade: rejeita tanto a verdade metafísica como o ceticismo; insiste na utilidade prática das noções como critério da verdade. Na pessoa de Dewey, conjuga-se com o engajamento social. 
A filosofia analítica, com sua ênfase na lógica,
dominou a filosofia americana até os anos 50

Com o nazismo na Europa e a eclosão do conflito, os EUA começam a receber filósofos europeus, muitos dos quais de origem judia, que vão encontrar espaço nas universidades, como Carnap e Reichenbach. Eles filiam-se ao chamado Círculo de Viena (do qual era próximo também Hans Kelsen), que cultiva o neopositivismo ou a chamada filosofia analítica. Ela passa a dominar a cena da filosofia norte-americana. 

Os neopositivistas têm um enfoque epistemológico: estudam as condições da verdade filosófica, como a linguagem e a lógica. Restringem bastante o espectro das questões filosóficas abordadas e repelem como metafísica e não científica boa parte do que o Ocidente vinha chamando de filosofia, sobretudo os grandes sistemas filosóficos como os de Hegel, Marx, a psicanálise e a obra de Nietzsche. Os analíticos, por seu rigor epistemológico, são neokantianos. 

A partir dos anos 50, os filósofos americanos começam a questionar aspectos da filosofia analítica, mantendo-a contudo como sua base ou ponto de partida. São filósofos pós-analíticos que por vezes se reaproximam da filosofia europeia ou continental. Criticam a filosofia analítica justamente por seu aspecto reducionista. Entre esses autores, podemos citar Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell, MacIntyre e Kuhn.

Rorty, defensor de uma cultura pós-filosófica:
depois da filosofia, a democracia
Hilary Putnam bate-se contra a distinção cara aos neopositivistas entre juízo de fato e juízo de valor. Para estes, ciência e filosofia só poderiam ter como objeto os juízos de fato; os juízos de valor, como os morais e os políticos, estariam relegados ao reino da subjetividade e da emoção, longe da verdade. Para Putnam os próprios juízos de fato já são permeados por valores e, quanto aos valores em si, Putnam é um defensor do realismo ou objetivismo moral: para ele é possível, sim, estabelecer verdades nesse campo. Não verdades absolutas, mas asserções passíveis de "asseverabilidade ou denegabilidade garantidas."

Richard Rorty também se afasta da filosofia analítica e é ainda mais crítico quanto à possibilidade da verdade, assumindo uma postura cética. Mas não deixa de considerar que a verdade é possível, como inserida em determinado contexto linguístico e cultural. Chega a afirmar que entre filosofia e literatura não existe diferença, pois ambas veiculam visões de mundo e vocabulários particulares, entre os quais se deverá optar, sem contudo se poder estabelecer de forma neutra uma verdade entre eles. Rorty faz um resgate do pragmatismo, sobretudo de Dewey e insiste na democracia como forma mais adequada de o homem se organizar, dado o pluralismo e a secularização das sociedades modernas.

MacIntyre: retorno a Aristóteles
Alasdair MacIntyre, da mesma forma, mas especificamente no ramo da filosofia moral, afasta-se do universalismo pretendido pelos analíticos, defendendo uma visão historicista e cultural da moralidade. Volta-se contra a herança iluminista, seja de Kant ou de Stuart Mill, que se baseia num conceito universal de homem, permeado de racionalidade e universalidade. Para ele, a moralidade está sempre ligada a uma tradição, à história e portanto carrega algo de contingente. MacIntyre pode ser considerado um "comunitarista", em oposição a alguns postulados do liberalismo - e prega um retorno à ética das virtudes de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. 

Por fim, Thomas Kuhn, na mesma linha crítica da verdade, questiona a própria "cientificidade" das ciências naturais, como usualmente concebida. A ciência se organizaria a partir de "paradigmas", em torno dos quais se estrutura todo um sistema de verdades e questionamentos - como o ptolomeico, o galileano, o newtoniano, até que novas teorias venham a quebrar tais paradigmas - as chamadas revoluções científicas. 

Concluindo com uma apreciação pessoal, gosto de Rorty, como já manifestei em outro post. Defender uma verdade pode ser algo pesado para o indivíduo e custoso para a sociedade. Melhor ter um vocabulário, ao lado de outros, e tentar demonstrar através do diálogo por que o seu é mais vantajoso.Como ele disse:

"Não há nada que valide o vocabulário final de uma pessoa ou de uma cultura. Tudo o que podemos fazer é trabalhar com o vocabulário final de que dispomos, mantendo os ouvidos abertos para as sugestões de como seria possível expandi-lo ou revisá-lo." 










terça-feira, 9 de julho de 2013

PEC 33: um debate constitucional legítimo

Diferentemente da PEC 37 que, a meu ver, veiculava sobretudo uma pretensão corporativa, penso que a PEC 33 levanta um debate importante, como já assinalou o competente professor de Direito Constitucional Maurício Gentil, em três artigos que escreveu sobre o tema e cujos links reproduzo aqui:


A PEC 33 inicialmente veicula a proposta de dificultar a edição das chamadas súmulas vinculantes pelo Supremo: em verdade, o STF passa a propor a sua adoção, e a proposta deve ser aprovada por maioria absoluta do Congresso. Como afirma o professor Maurício Gentil, se a súmula vinculante adveio ao mundo jurídico através de emenda constitucional, não pode ser considerada cláusula pétrea ou manifestação da cláusula pétrea da separação dos Poderes. E não preciso me estender aqui sobre como o STF utilizou-se com largueza excessiva desse instrumento, fora das hipóteses previstas na Constituição.

Um dos pontos polêmicos da PEC refere-se à declaração de inconstitucionalidade de emendas constitucionais. No nosso modelo, isso pode se dar por motivos procedimentais ou materiais, neste último caso quando a emenda constitucional afrontar alguma das cláusulas pétreas; portanto, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de emendas, à parte o aspecto procedimental, reside no conceito de cláusula pétrea.

O que quero ressaltar nesse pequeno texto é que as cláusulas pétreas, como concebidas no nosso direito constitucional, talvez não tenham paralelo no direito comparado e, evidentemente, essa opção do constituinte acarreta consequências importantes do ponto de vista da democracia. Com efeito, não existindo cláusula pétrea, a última palavra pode ser sempre do parlamento ou do povo - através do poder de revisão ou reforma da constituição; com a cláusula pétrea, a última palavra pode ser da corte constitucional, ao rejeitar uma emenda e, portanto, declarar imutável determinada norma ou interpretação.
Em caso de divergência entre o STF e o Congresso sobre ofensa a cláusula pétrea,
a PEC 33 prevê consulta popular

Na França, por exemplo, só é cláusula pétrea a forma republicana de governo (art, 89, al. 5) e também assim dispõe a constituição italiana (art. 139). Ainda na França, a regra é que as emendas constitucionais sejam submetidas a referendo popular, podendo o referendo ser substituído pela deliberação do parlamento como "congresso", que deve adotar a proposta por 3/5 dos votos.

A PEC 33 propõe que, no caso de declaração de inconstitucionalidade de emenda, por razões materiais, ou seja, quando invocada cláusula pétrea como fundamento, a decisão deverá ser submetida ao Congresso; se ele rejeitar a declaração de inconstitucionalidade por 3/5 dos votos em sessão conjunta, a questão será submetida à consulta popular.

Embora eu não tenha uma opinião definitiva sobre esse ponto específico, vê-se que o mecanismo adotado é democrático, apesar de fragilizar o instituto da cláusula pétrea que, como vimos, não é unanimidade no constitucionalismo; nem pode ser a proposta tachada de populista ou cesarista, uma vez que, além da participação popular, prevê a manifestação das vontades do STF e do Congresso. Alguns autores, como Danilo Zolo, falam em modelos liberais e democráticos de constitucionalismo; os liberais seriam aqueles em que a guarda da constituição, sobretudo no aspecto das liberdades individuais, cabe precipuamente a uma corte constitucional, sem possibilidade de modificação do texto pelo povo, como seria o caso dos Estados Unidos (na prática) ou, arrisco, do nosso modelo hoje. 

Penso que a polêmica tem uma origem ainda mais complexa. O Estado de direito moderno nasce da conjugação de duas ideias às vezes conflitantes: a defesa dos direitos individuais - com o jusnaturalismo e seu teor transcendente como base filosófica, portanto, com vocação à permanência -  e a democracia como vontade do povo na formação do governo, em si mesma contingente.

Por fim, concordo com o professor Maurício na rejeição aos quóruns modificados pela PEC. A exigência de 4/5 para a declaração de inconstitucionalidade é certamente exagerada. No mais, a PEC suscita questões presentes na filosofia política e jurídica, difíceis e polêmicas por natureza, mas não absurdas como se fez crer.





domingo, 2 de junho de 2013

Do abandono afetivo e outras dores: direito ou moral?

Decisão do STJ de alguns meses atrás condenou um pai a pagar 200 mil reais à filha a título de danos morais, pelo chamado "abandono afetivo". Esclareça-se: não se tratava de pensão alimentícia, mas da alegação de que ele tinha sido ausente da vida da filha. A ilustre relatora chegou a dizer: não há o dever de amar, mas de cuidar, sim. A decisão me fez ler e refletir um bocado e tenho dúvidas quanto ao seu acerto.

Minha preocupação, basicamente, é a seguinte: será que essa obrigação do pai não será mais de cunho moral? Será que o direito pode legitimamente adentrar nessa seara?

Kant:
ação moral como ação
desinteressada
As relações entre direito e moral são complexas. Ambos dizem respeito à conduta humana e ao dever, mas a obrigação jurídica tem a seu favor o aspecto coercitivo. É evidente que o direito vai incorporando elementos que antes pertenciam exclusivamente ao campo da moral. Dar um agrado ao empregado por ocasião das festas de fim de ano já dependeu da generosidade do empregador. Hoje temos o 13º. E assim por diante.  Mas o direito evoluiu também excluindo de sua abrangência certos aspectos morais. O primeiro deles foi o da moral religiosa, com a Reforma e os albores da laicidade na Europa, após as guerras de religião. Com o Iluminismo e as revoluções liberais, temos toda uma esfera privada que cresce e na qual a regra é a liberdade, repelindo a intervenção estatal; não apenas a liberdade de atuação econômica, mas a de crença, opinião, pensamento, expressão.

Há outro fator relevante a levar em conta, o da espontaneidade da ação moral. A ação que possui valor moral, a boa ação, para Kant e talvez para o cristianismo, é a ação desinteressada. A moralidade está, pois, intimamente ligada à liberdade. Ser obrigado a ser bom seria uma contradição nos termos. Ser obrigado a amar, então, nem se fala, pois o amor está além da própria moral. Assim, o campo da moral sairia empobrecido com a sua crescente juridicização.

Além da citada decisão, temos outras na área do direito de família que, manejando o instituto dos danos morais, talvez de forma muito elástica, têm criado obrigações a meu ver mais afetas à esfera moral, como aquelas versando sobre rompimentos amorosos e adultérios. Outras questões relevantes aproximam-se da mesma temática, como a paternidade socioafetiva e até o chamado "bullyng", na sua versão de constrangimento psicológico.

Confesso minhas dúvidas, mas o aspecto que trago aqui às vezes é olvidado na discussão. Tais decisões não adentram de forma indevida na esfera privada? Será que o Estado pode esmiuçar a complexidade das relações afetivas para ditar uma condenação dessa espécie?

E, com esses questionamentos, ainda um último: não estaríamos tentando suprimir os riscos das relações humanas, a sua complexidade, o livre-arbítrio? As questões morais podem ser debatidas intensamente - pode-se criticar o pai ausente, o adúltero, o sádico, e com isso elevar o padrão de moralidade de todos. Mas a reprovação aí se daria, como quis Stuart Mill no seu famoso On liberty, na esfera da opinião, mas não do direito. 



Se o tema lhe interessa, escrevi um artigo mais aprofundado na Revista nº 116 do TRF da 3ª Região. Você pode baixar a revista no seguinte link: 






quarta-feira, 29 de maio de 2013

Você é um sábio chinês ou uma borboleta?


Não levamos os sonhos muito a sério, mas eles são uma coisa espantosa. Freud veio resgatar essa importância que os sonhos tinham desde a Antiguidade, mas em tempos de psicologia organicista eles são em geral considerados "restos", sem qualquer significado especial. Mas os sonhos são tão "reais" e acontecem de modo tão semelhante às percepções que temos na vigília, que os filósofos de há muito se questionaram: será que essa realidade que acredito viver não é um sonho? Que diferença existe, em termos de percepção, entre escrever essas linhas agora, acordado (assim suponho!), e sonhar que o estou fazendo? Por isso a dúvida,  mencionada por Platão, Aristóteles e principalmente por Descartes, que rompendo com o pensamento medieval e católico resolveu colocar tudo em questão.

Freud escreveu "A interpretação dos sonhos"
em  1899, formulando a hipótese do inconsciente
Chama-se de ceticismo a corrente filosófica que nega a possibilidade de conhecermos "de verdade" o mundo. Essa corrente surgiu na Grécia antiga com Pirro de Élis (por isso também chamada de pirronismo) e com o médico Sexto Empírico. O ceticismo levaria à suspensão do juízo e seria uma maneira de atingir a  tranquilidade, abalada na busca do filósofo pela verdade. O ceticismo tem adeptos mais modernos, como Montaigne, Hume e em algum grau o próprio Kant.





Uma versão antiga do problema é o sonho do sábio chinês Zhuangzi (ou Chuang-Tzu). Ele sonhou que era uma borboleta a voar alegremente. Quando acordou, ficou em dúvida e não mais a dissipou. Será que agora não seria a borboleta que estava sonhando que era Zhuangzi? Um argumento mais moderno seria o do "cérebro na cuba" (brain in a vat). Como podemos afirmar que nossas experiências estão de fato acontecendo e não nos são proporcionadas por algum tipo de experimento científico, como aquele em que nosso cérebro permaneceria numa cuba e o cientista o estimularia com as impressões que consideramos reais, algo como se passa no filme Matrix?


Penso, talvez numa perspectiva pragmática, que não temos como descartar em absoluto a dúvida de Zhuangzi ou o argumento do cérebro na cuba. Mas quem me sonha ou o cientista que me ilude têm sido extremamente persistentes. Não me dão trégua. Já há alguns anos, por exemplo, eles sonham que sinto dores nas pernas e que acordo procurando fios de cabelo no travesseiro. Entre outras coisas melhores e piores que isso. Nosso mundo pode até ser um sonho, mas é um sonho que mantém certa constância e que não nos impede de formular algumas leis e verdades. Tenho quase certeza, pois, de que não sou um sábio chinês e nem uma borboleta. Quanto a você, não estou bem certo... Escute essa música e decida-se se puder:


sábado, 25 de maio de 2013

Napoleão Bonaparte e a PEC 37





Mais que o seu domínio sobre a Europa, por meio do qual exportou a Revolução Francesa, Napoleão considerava que sua maior obra era o Código Civil, o chamado Code Napoléon.  Mas é no seu Code d'instruction criminelle de 1808 que vamos encontrar um interessante aspecto para a polêmica questão da PEC 37.

Esse código de processo penal estabelecia as regras do sistema do "juiz de instrução", ainda existente na França. Um Ministério Público que acusa, o Juiz de Instrução que instrui, investiga, mas não julga o caso em definitivo e outra instância judicial que vai efetivamente julgar a demanda (na França pode ser o tribunal de police, o tribunal correctionnel ou a cour d'assises, correspondente ao nosso tribunal do júri). Nesse sistema, fala-se do princípio da  separação das funções de acusação, instrução e julgamento.

Como se sabe, não adotamos o sistema do juizado de instrução que, aliás, vem perdendo espaço também na Europa. No entanto, na discussão sobre as funções da polícia e do Ministério Público no Brasil, faz-se às vezes uma importação errônea do princípio acima citado, substituindo-se na equação o juiz de instrução pela polícia judiciária e a instrução pela investigação policial. A analogia a nosso ver não procede, porque a instrução a cargo do juiz, naquele sistema, é bastante distinta da nossa investigação policial - o juiz de instrução atua investido de poderes propriamente jurisdicionais e pode determinar medidas como a busca e apreensão, a interceptação telefônica e originalmente a própria prisão preventiva. Daí vedar-se ao Ministério Público as funções próprias da instrução, que ficam a cargo do juiz.

A Polícia no Brasil não exerce funções comparáveis às do juiz de
instrução


Mas nada naqueles países estabelece uma eventual separação entre as funções do Ministério Público e da polícia no que concerne à condução da investigação. Tanto que na França a polícia investigativa está sob controle direto do procurador da República (art. 12 do CPP francês) e este pode realizar diretamente os atos de investigação que não dependam do juiz de instrução (art. 41).


Há alguns anos venho escrevendo sobre o tema. Vocês poderão encontrar alguma coisa mais aprofundada no artigo que publiquei no Consultor Jurídico:
http://www.conjur.com.br/2005-set-01/direito_comparado_razao_ministerio_publico

quarta-feira, 22 de maio de 2013


Rorty e as Orquídeas Selvagens


Meu filho achou meu primeiro "post" no blog "profissionaludo". Acho que queria algo menos jurídico. Vou  tentar agradá-lo dessa vez, falando de um filósofo que admiro.

Richard Rorty é um filósofo americano, falecido em 2007, aos 75 anos. É conhecido como um neopragmatista, pois retomou nos EUA os estudos sobre William James, John Dewey, etc. Politicamente, trata-se de um liberal, conhecido também por seu relativismo ou ceticismo.

Richard Rorty: liberal e cético
Filho de trotskistas, Rorty escreveu um artigo chamado "Trotsky e as orquídeas selvagens". Como ele, filho de militantes comunistas, poderia conciliar o imperativo de engajamento social e político com alguns gostos que foi desenvolvendo, digamos, aristocráticos, como a criação de orquídeas selvagens?

A obra de Rorty responde com uma separação rígida entre a vida privada e a vida pública. A vida privada é o lugar dos desejos, das idiossincrasias, da autocriação. A vida pública não deve interferir nessa esfera, a não ser no que for indispensável para a convivência social. Apesar dessa postura tipicamente liberal, Rorty acredita que podemos ser solidários, para que todos possam ter chances de desenvolver suas potencialidades. 
Trotsky

Outro aspecto relevante do pensamento de Rorty é o relativismo ou ceticismo. Ele não acredita em verdades políticas ou morais, ou pelo menos acredita que a verdade está sempre ligada  a um contexto histórico e linguístico. Assim, prefere falar em "vocabulários" diversos que coexistem na vida social. Nada há que garanta um fundamento último a esses vocabulários. Para Rorty, a própria filosofia consiste apenas num conjunto de sugestões dos filósofos sobre o que somos, como devemos nos organizar, etc. E filósofo, para o nosso autor, é simplesmente alguém que leu certos livros contendo essas sugestões e que faz  notas de rodapé aos escritos de Platão.


Defender uma verdade pode ser algo pesado para o indivíduo e custoso para a sociedade. Melhor ter um vocabulário, ao lado de outros, e tentar demonstrar através do diálogo por que o seu é mais vantajoso. Enquanto isso,  não há mal algum em cultivar orquídeas. 







terça-feira, 21 de maio de 2013

Controle da Administração pelo Ministério Público

Olá,

Gostaria de divulgar no blog alguns trabalhos. Inicialmente, o livro que lancei em 2006, pela Editora Del Rey, "O controle da Administração pelo Ministério Público." Foi resultado do mestrado que fiz na França, na Universidade de Toulouse. O tema foi bem brasileiro, mas seu estudo num contexto estrangeiro permitiu enriquecer o texto com comparações da justiça e das formas de controle da administração nos dois países.

O livro não é extenso, mas tentei reconstruir com algum método, do ponto de vista histórico e jurídico, o desenvolvimento dessas funções de controle da Administração pelo Ministério Público, bem como as características da ação civil pública que permitiram uma judicialização maior das questões administrativas, tanto em extensão como em profundidade. 
Na parte sobre discricionariedade administrativa e limites desses instrumentos, rejeitei a abordagem, já então existente, de controle das "políticas públicas" pelo Judiciário. Preferi partir de um trabalho empírico sobre ações civis públicas efetivamente propostas, classificando-as a partir do seu objeto, quando, por exemplo, objetivassem impor obrigações de fazer de caráter normativo ou obrigações de realizar "atividades materiais", analisando então as dificuldades que podem aparecer. Isso me pareceu propiciar conclusões mais minudentes e menos genéricas, tanto para defender a possibilidade do uso desse tipo de ação quanto para explicitar seus limites.
Fico satisfeito de ver que esse estudo, realizado em 2002, apesar de fazer a defesa da legitimidade do Ministério Público e da possibilidade das ACP´s na maioria dos casos, foi sóbrio do ponto de vista acadêmico e já expressava preocupação com os limites da atividade jurisdicional diante da política, que continua presente nas minhas reflexões, mais voltadas hoje para a atividade do STF no controle de constitucionalidade. 
Por fim, o lançamento, realizado em Aracaju/SE, foi um momento de grande realização, prestigiado pela família, amigos e  profissionais do meio jurídico.


Com minha mãe e meu filho no dia do lançamento

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Saudações!

Caros colegas e amigos,

De repente, me deu uma vontade danada de ter um blog! Um espaço onde eu possa dividir um pouco do meu dia a dia no judiciário e também das minhas reflexões sobre o direito e outros temas. Um espaço para o  "logos", que em grego significava inicialmente "verbo", mas depois passou a ser entendido como "razão", essa capacidade que temos de usar a linguagem para refletir sobre a nossa existência e a vida em sociedade, até para chegar à conclusão de que a razão não tem resposta pra tudo. Barthes associa saber e sabor, ambos derivados do latim "sapere", como se dizia antigamente e talvez ainda no português de Portugal: essa comida sabe-me bem! É preciso que o saber tenha sabor e que resulte numa vida mais saborosa. Eu tenho prazer em tentar saber um pouco mais e quero compartilhar com vocês esse exercício.

Um abraço,