Decisão do STJ de alguns meses atrás condenou um pai a pagar 200 mil reais à filha a título de danos morais, pelo chamado "abandono afetivo". Esclareça-se: não se tratava de pensão alimentícia, mas da alegação de que ele tinha sido ausente da vida da filha. A ilustre relatora chegou a dizer: não há o dever de amar, mas de cuidar, sim. A decisão me fez ler e refletir um bocado e tenho dúvidas quanto ao seu acerto.
Minha preocupação, basicamente, é a seguinte: será que essa obrigação do pai não será mais de cunho moral? Será que o direito pode legitimamente adentrar nessa seara?
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Kant: ação moral como ação desinteressada |
As relações entre direito e moral são complexas. Ambos dizem respeito à conduta humana e ao dever, mas a obrigação jurídica tem a seu favor o aspecto coercitivo. É evidente que o direito vai incorporando elementos que antes pertenciam exclusivamente ao campo da moral. Dar um agrado ao empregado por ocasião das festas de fim de ano já dependeu da generosidade do empregador. Hoje temos o 13º. E assim por diante. Mas o direito evoluiu também excluindo de sua abrangência certos aspectos morais. O primeiro deles foi o da moral religiosa, com a Reforma e os albores da laicidade na Europa, após as guerras de religião. Com o Iluminismo e as revoluções liberais, temos toda uma esfera privada que cresce e na qual a regra é a liberdade, repelindo a intervenção estatal; não apenas a liberdade de atuação econômica, mas a de crença, opinião, pensamento, expressão.
Há outro fator relevante a levar em conta, o da espontaneidade da ação moral. A ação que possui valor moral, a boa ação, para Kant e talvez para o cristianismo, é a ação desinteressada. A moralidade está, pois, intimamente ligada à liberdade. Ser obrigado a ser bom seria uma contradição nos termos. Ser obrigado a amar, então, nem se fala, pois o amor está além da própria moral. Assim, o campo da moral sairia empobrecido com a sua crescente juridicização.
Além da citada decisão, temos outras na área do direito de família que, manejando o instituto dos danos morais, talvez de forma muito elástica, têm criado obrigações a meu ver mais afetas à esfera moral, como aquelas versando sobre rompimentos amorosos e adultérios. Outras questões relevantes aproximam-se da mesma temática, como a paternidade socioafetiva e até o chamado "bullyng", na sua versão de constrangimento psicológico.
Confesso minhas dúvidas, mas o aspecto que trago aqui às vezes é olvidado na discussão. Tais decisões não adentram de forma indevida na esfera privada? Será que o Estado pode esmiuçar a complexidade das relações afetivas para ditar uma condenação dessa espécie?

Se o tema lhe interessa, escrevi um artigo mais aprofundado na Revista nº 116 do TRF da 3ª Região. Você pode baixar a revista no seguinte link:
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