domingo, 29 de março de 2020

Sobre duas metáforas de Gilles Deleuze


Deleuze e Guattari
Há alguns anos encantei-me com essas duas noções de Deleuze e Guattari, por sua beleza poética mas também pelo que representam em termos de concepção filosófica: “tornar-se mundo” (devenir monde) e “tornar-se imperceptível” (devenir imperceptible).

Estou longe de ser especialista ou conhecedor profundo de Deleuze, mas sua obra se insere na filosofia pós-moderna francesa. 
Rorty disse que toda a história da filosofia consiste em colocar notas de rodapé ao que escreveu Platão. E mais uma vez, parece ser Platão o principal adversário de Deleuze. Isso transparece na sua noção de rizoma, talvez a mais conhecida. O rizoma, segundo a botânica, é uma forma de caule, que pode ser aéreo ou subterrâneo, ao longo do qual se formam às vezes brotos; distinguem-se rizomas de tubérculos e bulbos...o inhame é tido como um tubérculo mas o gengibre seria um rizoma.

O que Deleuze parece querer destacar no rizoma é justamente essa ausência de definição, o seu prolongamento, ligações que vai estabelecendo, os brotos que surgem pelo caminho. E o toma para o contrapor à noção de árvore. Teríamos então filosofias e concepções arborescentes ou rizomáticas. A árvore, ao contrário do rizoma, teria uma definição, uma essência, um tronco mais ou menos grosso, copa, raízes, um lugar certo, uma visibilidade; poderia corresponder à Ideia platônica, perfeitamente definida, imutável, que residiria num mundo suprassensível.





As intuições de Deleuze podem ser aproximadas das de outros filósofos e correntes. Remeteriam à clássica polêmica, na filosofia, sobre os “universais” e ainda às concepções opostas de Parmênides e Heráclito, o primeiro defendendo a permanência do ser e o último o devir incessante das coisas. Mas ele não parece querer associar seu pensamento, de forma explícita, a qualquer dessas correntes e no seu Mille Plateaux (Mil Platôs), escrito com Guattari, procede por metáforas, referências literárias, biológicas, numa leitura instigante mas difícil de fazer.

Será que sofremos mesmo dessa doença binária, dessa lógica do ser, em que as coisas são ou não são? Talvez sim. Penso no “eu”. Temos uma visão do nosso eu como algo unitário, essencialmente coerente, unificado até pelo nome que nos deram, pelos substantivos e adjetivos que nos atribuem e que nos atribuímos. O filósofo escocês David Hume foi um dos primeiros a desafiar essa concepção do eu, que seria para ele um composto mais ou menos caótico de sensações, lembranças, medos, desejos, etc. Um autor de uma tradição muito diferente, espiritualista, como Jean-Yves Leloup, insiste também no "indefinido" que estaria no âmago do ser, criticando a lógica binária e aconselhando, também lembrando Heráclito, à fluidez, que seria o "luto da perfeição". (Amar...apesar de tudo. Ed. Vozes).

 Deleuze insiste na multiplicidade e também no devir. A multiplicidade desafia a unidade. As coisas não podem ser apreendidas da maneira platônica. A árvore conceitual ou universal comporta na realidade uma multiplicidade de árvores diferentes, cada qual com suas características e histórias próprias: copas maiores ou menores, troncos finos e grossos, raízes profundas ou superficiais, algumas já tendendo para o arbusto... criando as dificuldades linguísticas, pois a língua baseada em conceitos parece não corresponder ao mundo como ele é. Mesmo a árvore fixa “faz rizoma”, ligações com outras coisas que a tornam única: pode servir de sombra a alguém, de abrigo para o pássaro...

Entendi, ou melhor, senti inicialmente que “tornar-se mundo” é aceitar o mundo como ele é. Em última análise seria o “amor fati” de Nietzsche, o amor ao destino e ao próprio destino, ideia já presente nos estoicos. Fazer-se mundo seria finalmente deixar de querer mundo, de querer que o mundo seja de determinada maneira, e quem sabe poder gozar um pouco do mundo sendo assim. Adiante, em Mille Plateaux, Deleuze e Guattari talvez confirmem minha impressão: eliminar o que é lixo, morto e supérfluo, reclamação, desejo não satisfeito, defesa ou acusação, tudo o que enraíza cada um, todo mundo, em si mesmo.

Tornar-se imperceptível é o que faz o camaleão, o peixe-camuflado, tornando-se mundo e um com o mundo. Abrir mão de tudo que é perceptível demais, exagerado, identificado e identificável. Talvez de posições muito fechadas, concepções fixas, o medo do devir e da morte, última fronteira da imperceptibilidade.

O peixe-pedra
Tornar-se mundo, diz Deleuze, no final das contas é tornar-se “como todo mundo”, mas nem todo mundo consegue fazer esse percurso. Não é fácil não se fazer notar, sobretudo nos tempos atuais: ser desconhecido do seu porteiro, dos seus vizinhos e ao mesmo tempo fazer mundo buscando seus rizomas e vizinhanças próprias. Para isso, lembra Deleuze, é preciso certo ascetismo e sobriedade. E também elegância.

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