quarta-feira, 24 de julho de 2013

Da lógica à democracia: a filosofia americana no século XX

Estive lendo um livro (A filosofia americana: conversações, de Giovanna Borradori, Unesp) sobre a filosofia americana moderna e gostaria de compartilhar algumas impressões. Já havia lido Rorty,alguma coisa de Putnam e, mais especificamente na filosofia do direito, Dworkin. O livro me permitiu uma melhor sistematização.

No início do século XX, até a Segunda Guerra, segundo a autora, a filosofia americana não produziu grande coisa. Nada realmente inovador havia substituído a contribuição dos pais do chamado pragmatismo, Charles Sanders Pierce, William James e John Dewey. Esses autores serão revisitados pelos filósofos americanos depois de 1950 e continuam tendo uma grande relevância. O pragmatismo é marcado por uma profunda discussão quanto à verdade: rejeita tanto a verdade metafísica como o ceticismo; insiste na utilidade prática das noções como critério da verdade. Na pessoa de Dewey, conjuga-se com o engajamento social. 
A filosofia analítica, com sua ênfase na lógica,
dominou a filosofia americana até os anos 50

Com o nazismo na Europa e a eclosão do conflito, os EUA começam a receber filósofos europeus, muitos dos quais de origem judia, que vão encontrar espaço nas universidades, como Carnap e Reichenbach. Eles filiam-se ao chamado Círculo de Viena (do qual era próximo também Hans Kelsen), que cultiva o neopositivismo ou a chamada filosofia analítica. Ela passa a dominar a cena da filosofia norte-americana. 

Os neopositivistas têm um enfoque epistemológico: estudam as condições da verdade filosófica, como a linguagem e a lógica. Restringem bastante o espectro das questões filosóficas abordadas e repelem como metafísica e não científica boa parte do que o Ocidente vinha chamando de filosofia, sobretudo os grandes sistemas filosóficos como os de Hegel, Marx, a psicanálise e a obra de Nietzsche. Os analíticos, por seu rigor epistemológico, são neokantianos. 

A partir dos anos 50, os filósofos americanos começam a questionar aspectos da filosofia analítica, mantendo-a contudo como sua base ou ponto de partida. São filósofos pós-analíticos que por vezes se reaproximam da filosofia europeia ou continental. Criticam a filosofia analítica justamente por seu aspecto reducionista. Entre esses autores, podemos citar Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell, MacIntyre e Kuhn.

Rorty, defensor de uma cultura pós-filosófica:
depois da filosofia, a democracia
Hilary Putnam bate-se contra a distinção cara aos neopositivistas entre juízo de fato e juízo de valor. Para estes, ciência e filosofia só poderiam ter como objeto os juízos de fato; os juízos de valor, como os morais e os políticos, estariam relegados ao reino da subjetividade e da emoção, longe da verdade. Para Putnam os próprios juízos de fato já são permeados por valores e, quanto aos valores em si, Putnam é um defensor do realismo ou objetivismo moral: para ele é possível, sim, estabelecer verdades nesse campo. Não verdades absolutas, mas asserções passíveis de "asseverabilidade ou denegabilidade garantidas."

Richard Rorty também se afasta da filosofia analítica e é ainda mais crítico quanto à possibilidade da verdade, assumindo uma postura cética. Mas não deixa de considerar que a verdade é possível, como inserida em determinado contexto linguístico e cultural. Chega a afirmar que entre filosofia e literatura não existe diferença, pois ambas veiculam visões de mundo e vocabulários particulares, entre os quais se deverá optar, sem contudo se poder estabelecer de forma neutra uma verdade entre eles. Rorty faz um resgate do pragmatismo, sobretudo de Dewey e insiste na democracia como forma mais adequada de o homem se organizar, dado o pluralismo e a secularização das sociedades modernas.

MacIntyre: retorno a Aristóteles
Alasdair MacIntyre, da mesma forma, mas especificamente no ramo da filosofia moral, afasta-se do universalismo pretendido pelos analíticos, defendendo uma visão historicista e cultural da moralidade. Volta-se contra a herança iluminista, seja de Kant ou de Stuart Mill, que se baseia num conceito universal de homem, permeado de racionalidade e universalidade. Para ele, a moralidade está sempre ligada a uma tradição, à história e portanto carrega algo de contingente. MacIntyre pode ser considerado um "comunitarista", em oposição a alguns postulados do liberalismo - e prega um retorno à ética das virtudes de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. 

Por fim, Thomas Kuhn, na mesma linha crítica da verdade, questiona a própria "cientificidade" das ciências naturais, como usualmente concebida. A ciência se organizaria a partir de "paradigmas", em torno dos quais se estrutura todo um sistema de verdades e questionamentos - como o ptolomeico, o galileano, o newtoniano, até que novas teorias venham a quebrar tais paradigmas - as chamadas revoluções científicas. 

Concluindo com uma apreciação pessoal, gosto de Rorty, como já manifestei em outro post. Defender uma verdade pode ser algo pesado para o indivíduo e custoso para a sociedade. Melhor ter um vocabulário, ao lado de outros, e tentar demonstrar através do diálogo por que o seu é mais vantajoso.Como ele disse:

"Não há nada que valide o vocabulário final de uma pessoa ou de uma cultura. Tudo o que podemos fazer é trabalhar com o vocabulário final de que dispomos, mantendo os ouvidos abertos para as sugestões de como seria possível expandi-lo ou revisá-lo." 










terça-feira, 9 de julho de 2013

PEC 33: um debate constitucional legítimo

Diferentemente da PEC 37 que, a meu ver, veiculava sobretudo uma pretensão corporativa, penso que a PEC 33 levanta um debate importante, como já assinalou o competente professor de Direito Constitucional Maurício Gentil, em três artigos que escreveu sobre o tema e cujos links reproduzo aqui:


A PEC 33 inicialmente veicula a proposta de dificultar a edição das chamadas súmulas vinculantes pelo Supremo: em verdade, o STF passa a propor a sua adoção, e a proposta deve ser aprovada por maioria absoluta do Congresso. Como afirma o professor Maurício Gentil, se a súmula vinculante adveio ao mundo jurídico através de emenda constitucional, não pode ser considerada cláusula pétrea ou manifestação da cláusula pétrea da separação dos Poderes. E não preciso me estender aqui sobre como o STF utilizou-se com largueza excessiva desse instrumento, fora das hipóteses previstas na Constituição.

Um dos pontos polêmicos da PEC refere-se à declaração de inconstitucionalidade de emendas constitucionais. No nosso modelo, isso pode se dar por motivos procedimentais ou materiais, neste último caso quando a emenda constitucional afrontar alguma das cláusulas pétreas; portanto, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de emendas, à parte o aspecto procedimental, reside no conceito de cláusula pétrea.

O que quero ressaltar nesse pequeno texto é que as cláusulas pétreas, como concebidas no nosso direito constitucional, talvez não tenham paralelo no direito comparado e, evidentemente, essa opção do constituinte acarreta consequências importantes do ponto de vista da democracia. Com efeito, não existindo cláusula pétrea, a última palavra pode ser sempre do parlamento ou do povo - através do poder de revisão ou reforma da constituição; com a cláusula pétrea, a última palavra pode ser da corte constitucional, ao rejeitar uma emenda e, portanto, declarar imutável determinada norma ou interpretação.
Em caso de divergência entre o STF e o Congresso sobre ofensa a cláusula pétrea,
a PEC 33 prevê consulta popular

Na França, por exemplo, só é cláusula pétrea a forma republicana de governo (art, 89, al. 5) e também assim dispõe a constituição italiana (art. 139). Ainda na França, a regra é que as emendas constitucionais sejam submetidas a referendo popular, podendo o referendo ser substituído pela deliberação do parlamento como "congresso", que deve adotar a proposta por 3/5 dos votos.

A PEC 33 propõe que, no caso de declaração de inconstitucionalidade de emenda, por razões materiais, ou seja, quando invocada cláusula pétrea como fundamento, a decisão deverá ser submetida ao Congresso; se ele rejeitar a declaração de inconstitucionalidade por 3/5 dos votos em sessão conjunta, a questão será submetida à consulta popular.

Embora eu não tenha uma opinião definitiva sobre esse ponto específico, vê-se que o mecanismo adotado é democrático, apesar de fragilizar o instituto da cláusula pétrea que, como vimos, não é unanimidade no constitucionalismo; nem pode ser a proposta tachada de populista ou cesarista, uma vez que, além da participação popular, prevê a manifestação das vontades do STF e do Congresso. Alguns autores, como Danilo Zolo, falam em modelos liberais e democráticos de constitucionalismo; os liberais seriam aqueles em que a guarda da constituição, sobretudo no aspecto das liberdades individuais, cabe precipuamente a uma corte constitucional, sem possibilidade de modificação do texto pelo povo, como seria o caso dos Estados Unidos (na prática) ou, arrisco, do nosso modelo hoje. 

Penso que a polêmica tem uma origem ainda mais complexa. O Estado de direito moderno nasce da conjugação de duas ideias às vezes conflitantes: a defesa dos direitos individuais - com o jusnaturalismo e seu teor transcendente como base filosófica, portanto, com vocação à permanência -  e a democracia como vontade do povo na formação do governo, em si mesma contingente.

Por fim, concordo com o professor Maurício na rejeição aos quóruns modificados pela PEC. A exigência de 4/5 para a declaração de inconstitucionalidade é certamente exagerada. No mais, a PEC suscita questões presentes na filosofia política e jurídica, difíceis e polêmicas por natureza, mas não absurdas como se fez crer.