domingo, 5 de fevereiro de 2023

Epifania do cotidiano

Quando somos jovens, precisamos mesmo bater em muitas portas, experimentar muitas estradas e modos de ser. Sorte quando chegamos a algum lugar que nos satisfaz e podemos nos demorar um pouco.

Vamos criando hábitos, rotinas, repetindo gestos, amoldando todos os objetos e coisas ao nosso ser, e nos amoldando a elas. As coisas que nos cercam passam a exprimir nossa história, escolhas, modo de pensar e de estar no mundo.

No escuro da noite abro a gaveta do criado mudo e num gesto preciso alcanço uma latinha redonda, pequena, de um bálsamo chinês que me alivia algumas dores. Se precisar acender a luz da luminária, o dedo acertará o botão muitas vezes na primeira tentativa.

Mas o hábito pode tornar tudo normal, banal. Não prestamos atenção às coisas quando elas se tornam muito familiares. A própria vida transcorre assim, e mal lembramos da nossa finitude. Nos relacionamentos, nos habituamos tanto a determinada presença, “àquela alma tantas vezes tocada”, que “nunca mais vemos seu desenho e sua beleza originais”.[1]

Caminhamos e não nos damos conta disso. Começamos a vida rastejando e terminamos nos apoiando numa muleta ou precisando da mão do outro para reencontrar o equilíbrio; no intervalo dispomos dessa maravilhosa autonomia que é andar com dois pés. Édipo descobriu esse enigma, ele que tinha os pés inchados e andava com dificuldade.[2]

Menos ainda atentamos aos nossos sapatos, calçados de forma automática. Nos campos de concentração, porém, nos lembra Primo Levi, os sapatos eram todos misturados e os prisioneiros tinham que escolher sapatos aleatórios, ferindo os pés nas longas caminhadas. Um par de sapatos ajustados aos pés é a nossa primeira necessidade, mais que a comida, porque bem calçados conseguimos ir em busca dela.[3]

É preciso alguma atenção para, indo contra essa “adaptação neural”, abrirmo-nos à epifania do cotidiano, como a personagem de Clarice Lispector que se maravilhou quando viu um cego mascando chiclete.[4] 

Reinstaurar alguma inocência do olhar, certa humildade e paciência para perceber a singularidade das coisas e a beleza do mundo.



[1] NIETZSCHE, Friedrich. 100 aforismos sobre o amor e a morte. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012, p. 20.

[2] STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte, Autêntica, 2012.

[3] Ibid.

[4] No conto “Amor”, do livro “Laços de família”.