Quando somos jovens, precisamos mesmo bater em muitas portas, experimentar muitas estradas e modos de ser. Sorte quando chegamos a algum lugar que nos satisfaz e podemos nos demorar um pouco.
Vamos criando hábitos,
rotinas, repetindo gestos, amoldando todos os objetos e coisas ao nosso ser, e
nos amoldando a elas. As coisas que nos cercam passam a exprimir nossa história,
escolhas, modo de pensar e de estar no mundo.
No escuro da noite abro a
gaveta do criado mudo e num gesto preciso alcanço uma latinha redonda, pequena,
de um bálsamo chinês que me alivia algumas dores. Se precisar acender a luz da luminária,
o dedo acertará o botão muitas vezes na primeira tentativa.
Caminhamos e não nos
damos conta disso. Começamos a vida rastejando e terminamos nos apoiando numa muleta
ou precisando da mão do outro para reencontrar o equilíbrio; no intervalo dispomos
dessa maravilhosa autonomia que é andar com dois pés. Édipo descobriu esse
enigma, ele que tinha os pés inchados e andava com dificuldade.[2]
Menos ainda atentamos aos
nossos sapatos, calçados de forma automática. Nos campos de concentração, porém,
nos lembra Primo Levi, os sapatos eram todos misturados e os prisioneiros
tinham que escolher sapatos aleatórios, ferindo os pés nas longas caminhadas.
Um par de sapatos ajustados aos pés é a nossa primeira necessidade, mais que a
comida, porque bem calçados conseguimos ir em busca dela.[3]

[1]
NIETZSCHE, Friedrich. 100 aforismos sobre
o amor e a morte. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012,
p. 20.
[2] STALLYBRASS,
Peter. O casaco de Marx: roupas, memória,
dor. Belo Horizonte, Autêntica, 2012.
[3] Ibid.
[4] No
conto “Amor”, do livro “Laços de família”.