Faço essas pequenas reflexões a partir da leitura de
"Que faire de Carl Schmitt?" (Gallimard, 2011), excelente livro do
professor da Sorbonne de Filosofia do Direito Jean-François Kervégan.
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Carl Schmitt (1888-1985) |
Não pretendo adentrar nas reflexões de Schmitt sobre a
relação entre a política e o direito, e muito menos fazer um julgamento moral
desse autor que inegavelmente se aliou ao nazismo.
Parto, porém, do seu "Conceito do Político", obra
de 1932, uma de suas reflexões mais conhecidas. Schmitt
quer captar da maneira mais profunda o que caracteriza o fenômeno da política na
vida dos homens. Ao cabo dessa reflexão, ele não resume a política ao Estado, à
luta pelo poder do Estado; a política pode se dar em qualquer aspecto da vida
social e sua marca identificadora é a oposição amigo x inimigo. Onde quer que essa oposição apareça, estaremos
diante do fenômeno político. Evidente que Schmitt capta aí alguma verdade sobre
a política.
Depois da Segunda Guerra Mundial, Schmitt continuou a
escrever e a dividir os espíritos, como disse Habermas. Ele reedita "O
conceito do Político" em 1963 e na "Teoria
do Partisan" aduz que na política
moderna a oposição amigo x inimigo
chega ao seu ponto de maior intensidade - vê em Lênin uma formulação da
"guerra total" contra os inimigos políticos e fala em
"hostilidade absoluta". Kervégan relaciona esse acirramento com o terrorismo contemporâneo.
Gostaria simplesmente de relacionar esse conceito schmittiano
à nossa situação política no Brasil. Acredito que estamos chegando a essa
"hostilidade absoluta" de que falou Schmitt e próximos também da
"totalização" da política, que é a situação em que a política e a
oposição amigo x inimigo invadem todos
os espaços da vida social.
A partir das eleições de 2014 e do impeachment
da Presidente Dilma, o clima político foi se deteriorando e a hostilidade se espraiando pela
sociedade. Tomo como paradigmáticos e no meu entender especialmente repugnantes os
"apupos" públicos de políticos, personalidades e até de ministros do Supremo. O ápice
do acirramento aconteceu nas eleições presidenciais de 2018 e a tensão
prossegue no atual governo.
Não há dúvida de que a oposição "amigo x inimigo" é extremamente apropriada para definir o
nosso cenário político. O adversário torna-se, mais do que nunca, um inimigo.
Tais formulações assemelham-se também às de Levitsky e
Ziblatt no seu recente "Como as democracias morrem" (Zahar). O
político com tendências fascistas vê efetivamente o adversário como inimigo e conclama
não à sua derrota, pelos meios democráticos, mas à sua aniquilação.
É dessa lógica que devemos tentar sair - é preciso que o
adversário volte a ser um adversário. Quando o adversário é inimigo e a hostilidade
é absoluta, a política e a guerra não têm limites, advertiu Schmitt.
Como faremos isso, não sei ao certo.
Como membro do Poder Judiciário, desejo
que este busque se manter imune à lógica amigo
x inimigo. Por definição, o Judiciário não comunga dessa lógica, pois não
deve ser político, não no sentido partidário. E, mais, o Judiciário e
o Supremo Tribunal Federal em especial são atores que podem enfraquecer essa lógica no seio da
sociedade, numa defesa firme dos direitos constitucionais e mostrando que eles
se aplicam indistintamente a amigos e inimigos ou, melhor, a aliados e
adversários.