domingo, 7 de abril de 2019

Nietzsche e os ventos que sopram de Sils-Maria

Não sou nem de longe um conhecedor ou especialista em Nietzsche. Mas, estudioso da filosofia, tropeço nele com alguma frequência. A leitura que acabo de fazer de "Ecce Homo", sua última obra, inspira-me a escrever essas despretensiosas linhas.

"Ecce Homo", em latim, "eis o homem", é a frase que teria proferido Pilatos ao apresentar Cristo à multidão. Aqui é Nietzsche que se apresenta, ele, o Anticristo. Escrito em 1888, é um resumo da trajetória e das obras anteriores do filósofo, que ele busca explicar e contextualizar. No ano seguinte, Nietzsche teria a crise que se tornou famosa, ao ver um cavalo ser maltratado, a partir da qual restaria enfermo até sua morte em 1900.

"Nietzsche" em HQ, Onfray-Leroy, Ed. Nova Fronteira.
Belíssimos quadrinhos.

A minha sensação, após a leitura, é de enlevo e euforia, devidos ao que vejo de positivo na obra do filósofo. Nietzsche propõe uma filosofia da afirmação, do "sim" à vida, aos instintos, à natureza, à alegria e à saúde. Em algum momento (carta a Franz Overbeck, 1881), o filósofo reconheceu a influência de Spinoza, que define a alegria como tudo o que aumenta a nossa "potência de agir".

De fato, como ele afirma em "Ecce Homo", com muita grandiloquência, que alguns podem tomar como uma "mania de grandeza" que prenunciava a loucura, Nietzsche anuncia, em fins do século XIX, um mundo novo, que de certa forma, a meu ver, nós já habitamos! Critica e dá por derrotada, justamente em razão de sua obra, a moral cristã e sua desvalorização do corpo e do sexo - surpreendeu-me sua explicitude na crítica à moral sexual conservadora do seu tempo.

E é nisso que penso que ele de fato acertou. Deus morreu, ele  afirmou, não propriamente como afirmação do seu ateísmo pessoal, mas morreu como "realidade social" vigente a partir do cristianismo e que trazia consigo a moral opressora. 

A "transvaloração dos valores" pregada por ele e seu Zaratustra aconteceu, sim, de certa forma, nos mais de 100 anos que nos separam de sua morte. Afirmou-se cada vez mais a liberdade pessoal e, por mais que vivamos uma época de certo retorno do discurso moralista, espero que esse recuo não se efetivará. As pessoas hoje são livres nas suas crenças religiosas, ou na sua descrença, e sobretudo nas suas relações afetivas: o sexo se tornou mais livre, os casamentos podem ser desfeitos, a família não tem mais um formato específico, a homossexualidade pode ser vivida. 

Também os cuidados com o corpo triunfaram. Nietzsche reivindica no seu livro algo que pode parecer banal hoje, mas que talvez não fosse na sua época. A possibilidade de cuidar do corpo, da "fisiologia", como ele chama, algo que para ele seria melhor que a moral e a filosofia clássica; escolher sua alimentação com cuidado, o clima adequado para o seu humor e bem estar, o exercício físico, que  no seu caso eram grandes caminhadas nos Alpes e à beira do mar. Eu já estive no "caminho de Nietzsche", na cidadezinha de Èze, ao lado de Nice - uma trilha, como chamaríamos hoje, com vistas para o azul do Mediterrâneo. 

Não são poucos os avanços dessa liberdade pessoal, e Nietzsche previu, afirmou e defendeu essas mudanças. 

É claro que pode se pensar que seu projeto e antevisão não se resumiam a esses aspectos. A "morte de Deus" pode ser entendida como um processo capaz de levar séculos para se consolidar.

Também gosto, em Nietzsche, do questionamento do "bem" e das "boas intenções", a tentativa de integrar nossos bons e maus sentimentos ou, como a psicanálise irá consagrar, talvez em débito com o filósofo de Sils-Maria, o reconhecimento da nossa sombra e a integração do inconsciente na nossa vida psíquica. 

Onde tenho mais dificuldade com os conceitos de Nietzsche seria na sua transposição para o mundo político. Como se sabe, o filósofo era misógino e crítico da democracia e dos "direitos iguais". Mas não é isso que quero enfocar nessas linhas finais. Nem a questão do antissemitismo; me parece que Ecce Homo deixa claro que o filósofo não era antissemita, pelas críticas explícitas que faz a essa tendência da sociedade alemã de sua época.

Minha dificuldade seria com a superação da moral como um todo. Nas suas últimas linhas o filósofo se define como o primeiro "imoralista". A moral para ele é toda corrompida pela mentira, pela crença no ideal, no bem, no altruísmo; a moral seria criação de ressentidos e vingadores do corpo e da natureza. 

Ainda aqui entendo sua crítica no contexto da moral cristã e conservadora de sua época, mas não consigo conceber a moral como algo negativo e a ser superado totalmente. Apesar de não acreditar em "verdades morais" metafísicas, penso que a moral, como construção social, que reside basicamente no reconhecimento e no respeito ao outro, é insuperável na vida da pólis, para que ela seja possível, como o é também o direito. A própria moral cristã é reconhecida como um antecedente dos direitos humanos, também um horizonte permanente na filosofia política contemporânea. 

Richard Rorty, um admirador de Nietzsche, no seu "Contingência, ironia e solidariedade", reconhece que esse lado iconoclasta e sublime da filosofia nitzscheana sirva mais à nossa vida pessoal do que à vida política das democracias liberais. 

Feita essa ressalva, que se quis modesta, os ares da filosofia de Nietzsche me fazem bem. Das árvores que vejo da minha janela, soprou agora o vento eterno que vem das montanhas de Sils-Maria, enchendo-me de força e saúde na afirmação da vida. 

Caminho de Nietzsche em Èze