sábado, 4 de maio de 2019

Como sair da lógica amigo x inimigo: Carl Schmitt e a política no Brasil


Faço essas pequenas reflexões a partir da leitura de "Que faire de Carl Schmitt?" (Gallimard, 2011), excelente livro do professor da Sorbonne de Filosofia do Direito Jean-François Kervégan.
Carl Schmitt (1888-1985)
Não pretendo adentrar nas reflexões de Schmitt sobre a relação entre a política e o direito, e muito menos fazer um julgamento moral desse autor que inegavelmente se aliou ao nazismo.
Parto, porém, do seu "Conceito do Político", obra de 1932, uma de suas reflexões mais conhecidas. Schmitt quer captar da maneira mais profunda o que caracteriza o fenômeno da política na vida dos homens. Ao cabo dessa reflexão, ele não resume a política ao Estado, à luta pelo poder do Estado; a política pode se dar em qualquer aspecto da vida social e sua marca identificadora é a oposição amigo x inimigo. Onde quer que essa oposição apareça, estaremos diante do fenômeno político. Evidente que Schmitt capta aí alguma verdade sobre a política.
Depois da Segunda Guerra Mundial, Schmitt continuou a escrever e a dividir os espíritos, como disse Habermas. Ele reedita "O conceito do Político" em 1963  e na "Teoria do Partisan"  aduz que na política moderna a oposição amigo x inimigo chega ao seu ponto de maior intensidade - vê em Lênin uma formulação da "guerra total" contra os inimigos políticos e fala em "hostilidade absoluta". Kervégan relaciona esse acirramento com o terrorismo contemporâneo.
Gostaria simplesmente de relacionar esse conceito schmittiano à nossa situação política no Brasil. Acredito que estamos chegando a essa "hostilidade absoluta" de que falou Schmitt e próximos também da "totalização" da política, que é a situação em que a política e a oposição amigo x inimigo invadem todos os espaços da vida social.
A partir das eleições de 2014 e do impeachment da Presidente Dilma, o clima político foi se deteriorando e a hostilidade se espraiando pela sociedade. Tomo como paradigmáticos e no meu entender especialmente repugnantes os "apupos" públicos de políticos, personalidades e até de ministros do Supremo. O ápice do acirramento aconteceu nas eleições presidenciais de 2018 e a tensão prossegue no atual governo.
Não há dúvida de que a oposição "amigo x inimigo" é extremamente apropriada para definir o nosso cenário político. O adversário torna-se, mais do que nunca, um inimigo.
Tais formulações assemelham-se também às de Levitsky e Ziblatt no seu recente "Como as democracias morrem" (Zahar). O político com tendências fascistas vê efetivamente o adversário como inimigo e conclama não à sua derrota, pelos meios democráticos, mas à sua aniquilação.
É dessa lógica que devemos tentar sair - é preciso que o adversário volte a ser um adversário. Quando o adversário é inimigo e a hostilidade é absoluta, a política e a guerra não têm limites, advertiu Schmitt.
Como faremos isso, não sei ao certo.
Como membro do Poder Judiciário, desejo que este busque se manter imune à lógica amigo x inimigo. Por definição, o Judiciário não comunga dessa lógica, pois não deve ser político, não no sentido partidário. E, mais, o Judiciário e o Supremo Tribunal Federal em especial são atores que podem enfraquecer essa lógica no seio da sociedade, numa defesa firme dos direitos constitucionais e mostrando que eles se aplicam indistintamente a amigos e inimigos ou, melhor, a aliados e adversários.


domingo, 7 de abril de 2019

Nietzsche e os ventos que sopram de Sils-Maria

Não sou nem de longe um conhecedor ou especialista em Nietzsche. Mas, estudioso da filosofia, tropeço nele com alguma frequência. A leitura que acabo de fazer de "Ecce Homo", sua última obra, inspira-me a escrever essas despretensiosas linhas.

"Ecce Homo", em latim, "eis o homem", é a frase que teria proferido Pilatos ao apresentar Cristo à multidão. Aqui é Nietzsche que se apresenta, ele, o Anticristo. Escrito em 1888, é um resumo da trajetória e das obras anteriores do filósofo, que ele busca explicar e contextualizar. No ano seguinte, Nietzsche teria a crise que se tornou famosa, ao ver um cavalo ser maltratado, a partir da qual restaria enfermo até sua morte em 1900.

"Nietzsche" em HQ, Onfray-Leroy, Ed. Nova Fronteira.
Belíssimos quadrinhos.

A minha sensação, após a leitura, é de enlevo e euforia, devidos ao que vejo de positivo na obra do filósofo. Nietzsche propõe uma filosofia da afirmação, do "sim" à vida, aos instintos, à natureza, à alegria e à saúde. Em algum momento (carta a Franz Overbeck, 1881), o filósofo reconheceu a influência de Spinoza, que define a alegria como tudo o que aumenta a nossa "potência de agir".

De fato, como ele afirma em "Ecce Homo", com muita grandiloquência, que alguns podem tomar como uma "mania de grandeza" que prenunciava a loucura, Nietzsche anuncia, em fins do século XIX, um mundo novo, que de certa forma, a meu ver, nós já habitamos! Critica e dá por derrotada, justamente em razão de sua obra, a moral cristã e sua desvalorização do corpo e do sexo - surpreendeu-me sua explicitude na crítica à moral sexual conservadora do seu tempo.

E é nisso que penso que ele de fato acertou. Deus morreu, ele  afirmou, não propriamente como afirmação do seu ateísmo pessoal, mas morreu como "realidade social" vigente a partir do cristianismo e que trazia consigo a moral opressora. 

A "transvaloração dos valores" pregada por ele e seu Zaratustra aconteceu, sim, de certa forma, nos mais de 100 anos que nos separam de sua morte. Afirmou-se cada vez mais a liberdade pessoal e, por mais que vivamos uma época de certo retorno do discurso moralista, espero que esse recuo não se efetivará. As pessoas hoje são livres nas suas crenças religiosas, ou na sua descrença, e sobretudo nas suas relações afetivas: o sexo se tornou mais livre, os casamentos podem ser desfeitos, a família não tem mais um formato específico, a homossexualidade pode ser vivida. 

Também os cuidados com o corpo triunfaram. Nietzsche reivindica no seu livro algo que pode parecer banal hoje, mas que talvez não fosse na sua época. A possibilidade de cuidar do corpo, da "fisiologia", como ele chama, algo que para ele seria melhor que a moral e a filosofia clássica; escolher sua alimentação com cuidado, o clima adequado para o seu humor e bem estar, o exercício físico, que  no seu caso eram grandes caminhadas nos Alpes e à beira do mar. Eu já estive no "caminho de Nietzsche", na cidadezinha de Èze, ao lado de Nice - uma trilha, como chamaríamos hoje, com vistas para o azul do Mediterrâneo. 

Não são poucos os avanços dessa liberdade pessoal, e Nietzsche previu, afirmou e defendeu essas mudanças. 

É claro que pode se pensar que seu projeto e antevisão não se resumiam a esses aspectos. A "morte de Deus" pode ser entendida como um processo capaz de levar séculos para se consolidar.

Também gosto, em Nietzsche, do questionamento do "bem" e das "boas intenções", a tentativa de integrar nossos bons e maus sentimentos ou, como a psicanálise irá consagrar, talvez em débito com o filósofo de Sils-Maria, o reconhecimento da nossa sombra e a integração do inconsciente na nossa vida psíquica. 

Onde tenho mais dificuldade com os conceitos de Nietzsche seria na sua transposição para o mundo político. Como se sabe, o filósofo era misógino e crítico da democracia e dos "direitos iguais". Mas não é isso que quero enfocar nessas linhas finais. Nem a questão do antissemitismo; me parece que Ecce Homo deixa claro que o filósofo não era antissemita, pelas críticas explícitas que faz a essa tendência da sociedade alemã de sua época.

Minha dificuldade seria com a superação da moral como um todo. Nas suas últimas linhas o filósofo se define como o primeiro "imoralista". A moral para ele é toda corrompida pela mentira, pela crença no ideal, no bem, no altruísmo; a moral seria criação de ressentidos e vingadores do corpo e da natureza. 

Ainda aqui entendo sua crítica no contexto da moral cristã e conservadora de sua época, mas não consigo conceber a moral como algo negativo e a ser superado totalmente. Apesar de não acreditar em "verdades morais" metafísicas, penso que a moral, como construção social, que reside basicamente no reconhecimento e no respeito ao outro, é insuperável na vida da pólis, para que ela seja possível, como o é também o direito. A própria moral cristã é reconhecida como um antecedente dos direitos humanos, também um horizonte permanente na filosofia política contemporânea. 

Richard Rorty, um admirador de Nietzsche, no seu "Contingência, ironia e solidariedade", reconhece que esse lado iconoclasta e sublime da filosofia nitzscheana sirva mais à nossa vida pessoal do que à vida política das democracias liberais. 

Feita essa ressalva, que se quis modesta, os ares da filosofia de Nietzsche me fazem bem. Das árvores que vejo da minha janela, soprou agora o vento eterno que vem das montanhas de Sils-Maria, enchendo-me de força e saúde na afirmação da vida. 

Caminho de Nietzsche em Èze












segunda-feira, 25 de março de 2019

Meu artigo na Conjur sobre o escola sem partido e a questão da laicidade

OPINIÃO

Laicidade e Escola sem Partido: concepção do movimento é equivocada


A laicidade do Estado, isto é, sua neutralidade em termos religiosos, deriva da própria liberdade de religião e da necessidade de convivência pacífica e igualitária entre todos os credos e entre os que não professam religião ou adotam crenças religiosas. A laicidade é como que a outra face da moeda em relação à liberdade de religião[1].
A Constituição traz ainda dispositivo específico, o artigo 19, I, que veda aos entes federativos estabelecer cultos ou igrejas, subsidiá-los ou com eles manter aliança, o que seria nosso correspondente da establishment clause do Direito Constitucional norte-americano, constante da Primeira Emenda da Constituição daquele país.
Pretendo debater neste artigo concepção presente nos textos e declarações dos líderes do movimento Escola sem Partido a respeito do princípio da laicidade. A assertiva do movimento é de que a laicidade estatal abrangeria não apenas a neutralidade do Estado diante das religiões, mas também o respeito pelo Estado à moralidade decorrente da religião, ou de determinada religião, e adotada por seus adeptos, considerando que a moralidade derivada de uma religião seria indissociável dela própria.
Tal concepção fundamentaria a vedação, defendida pelo movimento, no âmbito do ensino fundamental e médio, de temáticas como a ideologia de gênero e a educação sexual, que poderiam contrapor-se à moralidade religiosa. O movimento defende ainda a precedência dos valores familiares em temas morais, invocando o artigo 12, IV, da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Concede-se sem dificuldade que as religiões possuem sempre uma metafísica e uma ética, como afirmou Clifford Geertz[2]; isto é, além de uma compreensão sobre a divindade e a natureza do mundo, toda religião postula preceitos éticos ou de moralidade, fixando um modo de vida e regras para as relações sociais.
No entanto, estender a noção de laicidade como desejado parece-nos um equívoco teórico, capaz de levar, ao contrário, à ofensa desse mesmo princípio.
O princípio da laicidade impede que o Estado e seus agentes, no exercício de suas funções, privilegiem uma religião em detrimento de outras, prejudiquem determinada confissão e, em geral, adotem manifestações explicitamente religiosas. Refere-se, pois, à exigência de neutralidade por parte do Estado em termos religiosos. Mas tal princípio não inclui o dever suplementar do Estado de abster-se de atos e manifestações que possam de alguma forma contrapor-se ou ofender determinada moralidade religiosa.
Com efeito, se assim fosse, a legislação e a atuação estatal como um todo deveriam sempre coadunar-se com os preceitos religiosos. A rigor, o Estado não poderia permitir o divórcio, pois isso feriria a moralidade das religiões que não o admitem; não poderia reconhecer as uniões homoafetivas, como fez o STF na ADPF 132; ou, nos EUA, não poderia admitir o aborto, como fez a Suprema Corte na decisão Roe x Wade de 1973.
O Estado estaria completamente manietado em sua ação, impedido de aplicar suas próprias regras e princípios jurídicos, para evitar contrapor-se às éticas ou moralidades religiosas.
Sabe-se que os filósofos do Direito divergem sobre as relações entre Direito e moral. Alguns, como os jusnaturalistas, defendem a existência de uma conexão conceitual entre essas realidades, isto é, em algum ponto da reflexão o Direito e a moral se confundiriam. Já os positivistas adotam a tese da separação entre Direito e moral; mas, mesmo eles, e queremos destacar esse aspecto, admitem a existência de uma conexão histórica ou contingente entre os conceitos. Isto quer dizer que o Direito efetivamente abriga boa parte da moral social e, nas mãos do Estado, preceitos morais tornam-se normas jurídicas, de observância obrigatória para todos os cidadãos. Não matar é uma regra moral e também jurídica, e de certa forma toda norma jurídica alberga um valor moral[3]. Dissente-se sobre a amplitude com que os juízes podem lançar mão de argumentos morais, mas parece pacífico que os legisladores podem tranquilamente adotar pontos de vista morais na elaboração das leis, desde que não ofendam princípios e regras constitucionais.
Sendo assim, o Estado, por meio do Direito, consagra posições morais, selecionando-as entre as concepções morais, frequentemente divergentes, existentes no meio social. Quando adota normas civis, penais, trabalhistas, ambientais, admite ou não as uniões homoafetivas etc., o Estado está fazendo escolhas morais.
Portanto, na sua função legislativa, e em geral, o Estado faz escolhas morais e valorativas e não tem qualquer obrigação de fazê-las sempre em conformidade com os preceitos de qualquer moralidade religiosa, ou se abstendo de não as ofender. O contrário é que está vedado: o Estado não pode fazer escolhas que sejam inspiradas de forma direta e exclusiva na moralidade religiosa, justamente para não ferir o princípio da laicidade. Uma lei contra o aborto que se inspirasse explicitamente em preceito de moralidade religiosa incorreria em inconstitucionalidade.
Nesse sentido, a atuação estatal deve orientar-se pelo que já se chamou de “razão pública”, argumentos que buscam ser válidos para a generalidade dos cidadãos, independentemente de suas crenças religiosas, filosóficas, políticas etc. Ainda que o fundamento de determinada lei resida na moralidade, esta há de ser a moralidade comum, capaz de ser defendida sem o recurso a concepções religiosas. Nesse sentido, de afastarem-se razões ou fundamentos religiosos das políticas públicas, foi o voto do ministro Marco Aurélio na ADPF 54 que autorizou o aborto do feto anencéfalo.
Diga-se, também, que a política e os programas e posições dos variados partidos e seus adeptos estão sempre impregnados de concepções morais, mais uma razão pela qual o Estado, nas suas diversas formas de manifestação, acabará veiculando posições morais. Cite-se como exemplo a recente campanha do governo francês contra a homofobia nas escolas públicas[4]. E, como dito, o Estado não está nisso limitado por concepções ou moralidades religiosas.
Ainda que o suposto dever de “respeitar a moralidade religiosa” fosse restrito à postura do professor em sala de aula, tal concepção não se mostra viável. Tomemos a proposição: “os homossexuais têm o direito de se casar”. Segundo a assertiva em debate, o professor não poderia dizer isso em sala de aula, se tal afirmação for capaz de contradizer ou ofender a moralidade de alguma religião. Mas a proposição é chancelada pelo Estado brasileiro, por meio da decisão do Supremo que a reconheceu como decorrente do princípio constitucional da isonomia. Estaria o professor, pois, tolhido de repassar aos alunos uma informação relevante sobre a sociedade e o ordenamento jurídico para não ferir preceitos religiosos?
A concepção em discussão acaba por conferir à liberdade de religião posição de supremacia diante de outros direitos fundamentais. O direito à educação, a liberdade de expressão e científica, todo e qualquer direito deveria recuar diante dos óbices impostos pela religiosidade. E, como sabemos, é característica dos direitos fundamentais não estabelecerem entre si uma hierarquia prévia; do ponto de vista abstrato, dois princípios colidentes obrigam da mesma forma, isto é, não guardam qualquer relação de precedência um sobre o outro, o que vem a ser justamente o que Robert Alexy definiu como o caráter prima facie dos princípios[5].
Por fim, concluindo o raciocínio, fica claro que essa pretendida capitulação do Estado diante da moralidade religiosa é, sim, capaz de configurar ofensa ao princípio constitucional da laicidade, trazendo as considerações religiosas do âmbito privado, onde devem permanecer, para a esfera pública.
Deixaremos para outro escrito a refutação do argumento segundo o qual o artigo 12, 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos imporia, por sua vez, a abstenção do Estado diante das convicções morais dos alunos e de seus familiares.

[1] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Laicidade e proibição do véu islâmico na França. Revista Direito Mackenzie, v. 10, n. 1, 2016, p. 180-187.
[2] GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. New York: Basic Books, Inc, Publishers, 1973, pp. 126/127.
[3] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Filosofia do Direito. São Paulo: Método, 2014, 158 p.
[4] http://br.rfi.fr/franca/20190128-franca-governo-lanca-campanha-contra-transfobia-nas-escolas
[5] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 96.