domingo, 23 de março de 2014

O debate Kelsen x Schmitt: pequenas anotações

Apesar de pretender fazer uma crítica às concepções liberais, é a um dos pais do liberalismo, Benjamin Constant, que Schmitt recorre para sustentar a necessidade de um “pouvoir neutre” como guardião da Constituição. Com efeito, Constant defende o poder real na Restauração de 1814 como um “Poder Moderador”, ideia adotada na nossa Constituição de 1824 – referida expressamente por Schmitt – e na Constituição portuguesa de 1826.

Para Schmitt, sob a Constituição de Weimar de 1919, é o Presidente do Reich que se coloca como esse poder neutro, intermediário, moderador e defensivo, que não está acima, mas ao lado dos demais poderes. Schmitt faz uma leitura ampla do art. 48 da Constituição, para considerar que o Presidente é o verdadeiro e único guardião da constituição.
 
 Schmitt foi membro
do Partido Nazista
O autor baseia-se numa concepção de “unidade política do Estado”, uma forma de totalidade do poder político que se veria ameaçada com o moderno pluralismo partidário vigente na Europa. Somente o Presidente do Reich, eleito diretamente pelo povo, representaria essa unidade política do povo alemão, capaz de superar a fragmentariedade dos interesses defendidos pelos partidos.

Outro aspecto relevante da posição de Schmitt, e que constitui o cerne do debate com Kelsen, diz respeito ao papel dos tribunais na defesa da Constituição. Schmitt parte de uma distinção forte entre Política e Justiça. A Justiça, capaz de ser propriamente exercida pelos juízes, seria aquela que resulta da vinculação à lei e da tarefa de dirimir as controvérsias daí advindas. Já as questões constitucionais, de elevado grau de abstração, seriam matéria da Política e portanto somente caberiam aos juízes por meio de uma “ficção de judicialidade” que derivaria do sistema de Kelsen. Sendo, pois, questões políticas, e levando em conta o princípio democrático albergado na Constituição de Weimar, deviam ser dirimidas por um órgão político, que seria o Presidente do Reich.

Kelsen responde de forma contundente às críticas e concepções de Schmitt e o associa a uma concepção imperial da política, acusando-o de ressuscitar a força do Chefe de Estado já esmaecida pelo desenvolvimento das instituições no século XIX. Para Kelsen, o controle de constitucionalidade que ele propôs, encampado pela Constituição da Áustria de 1922, exerce-se não apenas contra o Parlamento, mas em face do Executivo, que na sua concepção é composto tanto pelo governo parlamentar quanto pela chefia do Estado. Assim, o Tribunal Constitucional é necessário para assegurar a ordem constitucional e os limites do poder exercido inclusive pelo Presidente.


    O tribunal constitucional proposto
     por Kelsen foi adotado em vários
      países depois da  Segunda Guerra
Outro aspecto da posição de Kelsen é uma distinção menos nítida entre Política e Justiça. Com efeito, é sabido que Kelsen, na sua teoria normativista do Direito, supera a dualidade Estado x direito, considerando que o Estado é a própria ordem jurídica de coerção. Por outro lado, ao contrário do que comumente se pode pensar, Kelsen não propõe uma concepção “automática” da jurisdição – para ele, como asseverado em Teoria Geral do direito e do Estado, todo ato de aplicação do direito é também um ato de criação, que se dá num espaço maior ou menor, mas sempre inova de alguma forma a ordem jurídica.

Assim, Kelsen, como Schmitt, reconhece que a função do Tribunal Constitucional tem feição política, pois se trata, na sua concepção, de um legislador negativo, mas também não lhe nega o caráter de Justiça, de jurisdição, pois encarregado de aplicar as normas jurídicas contidas na Constituição.

O debate Kelsen x Schmitt é de grande importância teórica. Parece-nos inegável que a concepção de Schmitt trai uma concepção centralizadora e autoritária da política, que se materializa inclusive com a proximidade do autor com o regime nazista. Por sua vez, as proposições de Kelsen são nitidamente vitoriosas, sobretudo após a Segunda Guerra, com a adoção de tribunais constitucionais na maioria dos países europeus.

Por outro lado, as advertências e reflexões de Schmitt podem ser úteis na discussão atual sobre o neoconstitucionalismo e o ativismo judicial.