Apesar
de pretender fazer uma crítica às concepções liberais, é a um dos pais do
liberalismo, Benjamin Constant, que Schmitt recorre para sustentar a
necessidade de um “pouvoir neutre”
como guardião da Constituição. Com efeito, Constant defende o poder real na
Restauração de 1814 como um “Poder Moderador”, ideia adotada na nossa
Constituição de 1824 – referida expressamente por Schmitt – e na Constituição
portuguesa de 1826.
Para
Schmitt, sob a Constituição de Weimar de 1919, é o Presidente do Reich que se
coloca como esse poder neutro, intermediário, moderador e defensivo, que não
está acima, mas ao lado dos demais poderes. Schmitt faz uma leitura ampla do
art. 48 da Constituição, para considerar que o Presidente é o verdadeiro e
único guardião da constituição.
O
autor baseia-se numa concepção de “unidade
política do Estado”, uma forma de totalidade do poder político que se veria
ameaçada com o moderno pluralismo partidário vigente na Europa. Somente o
Presidente do Reich, eleito diretamente pelo povo, representaria essa unidade
política do povo alemão, capaz de superar a fragmentariedade dos interesses
defendidos pelos partidos.
Outro
aspecto relevante da posição de Schmitt, e que constitui o cerne do debate com
Kelsen, diz respeito ao papel dos tribunais na defesa da Constituição. Schmitt
parte de uma distinção forte entre Política e Justiça. A Justiça, capaz de ser
propriamente exercida pelos juízes, seria aquela que resulta da vinculação à
lei e da tarefa de dirimir as controvérsias daí advindas. Já as questões constitucionais, de elevado grau de abstração, seriam
matéria da Política e portanto somente caberiam aos juízes por meio de uma “ficção de judicialidade” que derivaria
do sistema de Kelsen. Sendo, pois, questões políticas, e levando em conta o
princípio democrático albergado na Constituição de Weimar, deviam ser dirimidas
por um órgão político, que seria o Presidente do Reich.
Kelsen
responde de forma contundente às críticas e concepções de Schmitt e o associa a
uma concepção imperial da política, acusando-o de ressuscitar a força do Chefe
de Estado já esmaecida pelo desenvolvimento das instituições no século XIX.
Para Kelsen, o controle de constitucionalidade que ele propôs, encampado pela
Constituição da Áustria de 1922, exerce-se não apenas contra o Parlamento, mas
em face do Executivo, que na sua concepção é composto tanto pelo governo
parlamentar quanto pela chefia do Estado. Assim, o Tribunal Constitucional é
necessário para assegurar a ordem constitucional e os limites do poder exercido
inclusive pelo Presidente.
Outro
aspecto da posição de Kelsen é uma distinção menos nítida entre Política e
Justiça. Com efeito, é sabido que Kelsen, na sua teoria normativista do
Direito, supera a dualidade Estado x
direito, considerando que o Estado é a própria ordem jurídica de coerção.
Por outro lado, ao contrário do que comumente se pode pensar, Kelsen não propõe
uma concepção “automática” da jurisdição – para ele, como asseverado em Teoria Geral do direito e do Estado,
todo ato de aplicação do direito é também um ato de criação, que se dá num
espaço maior ou menor, mas sempre inova de alguma forma a ordem jurídica.
Assim,
Kelsen, como Schmitt, reconhece que a função do Tribunal Constitucional tem
feição política, pois se trata, na sua concepção, de um legislador negativo,
mas também não lhe nega o caráter de Justiça, de jurisdição, pois encarregado
de aplicar as normas jurídicas contidas na Constituição.
O
debate Kelsen x Schmitt é de grande
importância teórica. Parece-nos inegável que a concepção de Schmitt trai uma
concepção centralizadora e autoritária da política, que se materializa
inclusive com a proximidade do autor com o regime nazista. Por sua vez, as
proposições de Kelsen são nitidamente vitoriosas, sobretudo após a Segunda Guerra,
com a adoção de tribunais constitucionais na maioria dos países europeus.
Por
outro lado, as advertências e reflexões de Schmitt podem ser úteis na discussão
atual sobre o neoconstitucionalismo e o ativismo judicial.